domingo, 27 de junho de 2010

Fragmentos de um discurso amoroso (II): Ausência, saudade, perdão

Na tentativa de terminar o "fichamento" do livro do Roland Barthes em um só post, acabei fazendo um amontoado de frases, sem discutir porque elas me chamaram a atenção. Agora, vou retomar algumas delas, antes de mostrar outros trechos do livro.


"Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda). […] De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: esse homem que espera e sofre, está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado." [p. 53]
Sobre este trecho, meu colega Harlyson comentou o seguinte:

"É o lado histórico que é abordado e justamente por isso Barthes tem razão. Se entendermos que o discurso feminino é o de ausência então qualquer discurso que fale da ausência, ainda mais como lamento é um discurso feminino.
Como homem é muito fácil perceber isso. Homens não podem falar palavras carinhosas à mulher quando estão na companhia de outros homens. Palavras de carinho são coisas de mulher! De igual modo não podem dizer que estão com saudades (discurso/lamento de ausência), pois são ridicularizados. Homem que é homem pode ter falta de sexo. Da namorada/noiva/esposa/mulher? Não! Afinal, sexo se pode conseguir com qualquer mulher e não implica sentimento. O sentimento é vetado ao homem. Homem não sente. E quando sente e espera e sofre a ausência da mulher amada, então não é mais homem. Se um homem sente saudades de uma mulher ele está sendo vulnerável e isso é inadmissível para o homem. Se sente saudades de outro homem (como amigo mesmo) é vulnerável da mesma forma..
Eis a resposta: Homens! Não sejam vulneráveis!
E por que ser vulnerável é entendido como coisa de mulher? E quem disse que sofrer é se vulnerável?"
Não sei se é tanto o lado histórico que Barthes aborda, acho que é mais o literário. Os exemplos são muitos: Penélope esperando pacientemente enquanto Ulisses é seduzido por sereias e feiticeiras, Solveig envelhecendo numa cabana enquanto Peer Gynt ganha o mundo (ganha um doce quem reconhecer esta referência sem clicar no link...), a Bela Adormecida esperando o beijo do amor verdadeiro, a Princesa Cogumelo (Peach?) esperando que o jogador consiga fazer o Mario passar de fase, derrotar o Bowser e salvá-la do castelo... E por aí vai. No fim, a gente sempre volta para o velho modelo do homem que parte para grandes aventuras, deixando uma mulher que espera ansiosamente o seu retorno - e, claro, estará sempre disposta a perdoar uma eventual traição... Homens são assim mesmo, né? Mas e se a mulher tentasse isso? E se Penélope, em vez de ficar costurando e descosturando a mesma manta por dias seguidos, se casasse com um de seus pretendentes? Será que Ulisses a perdoaria? Ou trataria de limpar sua honra, como um bom macho? Aliás, se "o sentimento é vetado ao homem", como diz o Harlyson, como seria possível a ele perdoar?

Um parêntese: a "mini-ópera" A Quick One, While He's Away, do The Who, brinca um pouco com esse padrão: é a mulher que cai em tentação enquanto o homem está longe, e é ele quem tem que perdoá-la (ouça/assista aqui, veja a letra e a tradução aqui). E um parêntese dentro do parêntese: essa é uma das minhas músicas favoritas! As seções com seus diferentes climas, as harmonias vocais, a bateria, o baixo, aquele coro catártico no final repetindo "You are forgiven"... Fantástica. Adoraria assistir a (melhor ainda, participar de) uma apresentação ao vivo dessa música.

Mas voltando ao discurso da ausência... O Barthes afirma que "Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado". A paixão sensibiliza, fragiliza, feminiza. Mas isso não cria problemas só com os amigos: muitas mulheres vão correr (ou, no mínimo, estranhar) se o cara der sinais de que está apaixonado: "Ele fica me ligando/mandando mensagem toda hora, que cara carente!" A ironia é que, se ele não faz essas coisas, a gente fica logo preocupada achando que ele não está a fim... Ô coisinha complicada, rs! Me faz lembrar o episódio dos Simpsons em que a Lisa se apaixona pelo Nelson, e um dos amigos dele diz "Você beijou uma garota? Que gay!" (clipe aqui).

As perguntas finais do Harlyson são: "E por que ser vulnerável é entendido como coisa de mulher? E quem disse que sofrer é ser vulnerável?" Minha resposta para a primeira: séculos (milênios?) de patriarcado. Mesmo mulheres perfeitamente capazes de se virar sozinhas precisavam da tutela de um homem para serem respeitadas e/ou para terem um minímo de condições de vida (vide a história bíblica de Rute e Noemi). Em resumo, toda mulher era uma donzela em apuros...

Agora, não dá para negar que sofrer é sinônimo de vulnerabilidade. A pergunta que eu faria é: e quem disse que ser vulnerável é ruim?

Um comentário:

Elisa Teixeira de Souza disse...

Adorei essa discussão em cima do Fragmentos. Acho uma obra fantástica e muito inspiradora. Gostei dos comentários sobre o feminino no homem o desejo, quando tem asas, entende a linguagem da delicadeza. Boas inspirações!

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